terça-feira, 6 de março de 2012

Uma história para pensar.

"Caminhava distraidamemte pelo caminho e, de repente, viu-o.
Ali estava o imponente espelho de mão, ao lado da vereda, como se estivesse à sua espera.
Aproximou-se, levantou-o do chão e comtemplou-se nele.
Viu-se bem.
Não se viu tão jovem, mas os anos tinham sido bastante benignos para ele.
No entanto, havia alguma coisa desagradável na sua própria imagem.
Certa rigidez nos gestos ligava-o aos aspectos mais azedos da sua própria história.
A raiva.
O desespero.
A agressão.
O abandono.
A solidão.
Sentiu a tentação de o levar, mas depressa pôs de parte a ideia. Já havia bastantes coisas desagradáveis no planeta para carregar mais uma.
Decidiu ir-se embora e esquecer para sempre aquele caminho e aquele espelho insolente.
Caminhou durante horas procurando vencer a tentação de voltar até ao espelho. Aquele objecto misterioso atraía-o como os ímans atraem os metais.
Resistiu e acelerou o passo.
Trauteava canções infantis para não pensar naquela imagem horrível de si mesmo.
A correr, chegou à casa onde tinha vivido desde sempre. Meteu-se vestido na cama e tapou a cabeça com os lençóis.
Já não via o exterior, nem a vereda, nem o espelho, nem a sua própria imagem reflecida no espelho. Mas não podia evitar a recordação daquela imagem.
A do ressentimento,
da dor,
da solidão,
da falta de amor,
do medo,
do desprezo.

Havia certas coisas indizíveis e impensáveis.

Mas ele sabia onde tinha começado tudo aquilo...
Tinha começado naquela tarde, havia trinta e tantos anos...
O menino estava estendido, a chorar diante do lago a dor dos maus tratos dos outros.
Naquela tarde, o menino decidiu apagar, para sempre, a letra do alfabeto.

Aquela letra.
Aquela.
A letra necessária para nomear o outro se estiver presente.
A letra imprescindível para falar aos outros ao dirigir-lhes a palavra.

Se não houvesse maneira de os nomear, deixariam de ser desejados...
E então não haveria motivo para os sentir necessários...
E sem motivo nem forma de os invocar sentir-se-ia, por fim, livre...

EPÍLOGO

Escrevendo sem «u»
posso falar até do meu cansaço,
do que te pertence, do que me pertence,
do que tenho,
do que me cabe...
Até posso escrever sobre ele,
sobre eles,
e sobre os demais.
Mas sem «u»
não posso falar dos outros,
do tu,
não posso falar do seu,
do teu,
nem sequer do conjunto de nós todos.
Às vezes perco o «u»...
E deixo de poder falar-te,
pensar em ti, amar-te, dizer-te.
Sem «u», fico comigo mas tu desapareces...
E sem poder nomear-te,
como poderia desfrutar-te?

Como no conto... se tu não existes
condeno-me a ver o pior de mim mesmo
reflectindo-se eternamente
no mesmo,
mesmíssimo,
estúpido
espelho.

(In Contos para pensar - Jorge Bucay)



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